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3 de agosto de 2020

Eduardo Sebastião das Neves e a serenata para Santos Dumont.

Uma página pitoresca da história da música brasileira do início do Sec XX tem relação com uma Serenata, a mais antiga tradição de cantoria popular das cidades. E uma bem específica ficou marcada pela presença de um grupo expressivo de músicos, que trocaram o amor romântico, pelo ufanismo.

DE SERENATA A SERESTA 
No Brasil, a Serenata, ato de cantar canções de caráter sentimental à noite, pelas ruas, com parada obrigatória diante das casas das namoradas ganhou outro nome: Seresta. Nomenclatura que já aparece descrita em 1505 em Portugal por Gil Vicente na farsa "Quem tem farelos?".  Já no Brasil, o costume das serenatas seria referido pelo viajante francês Le Gentil de la Barbinais, de passagem por Salvador em 1717 ao contar em seu livro Nouveau voyage autour du monde que “à noite só se ouviam os tristes acordes das violas”, tocadas por portugueses (espadas escondidas sob os camisolões) a passear “debaixo dos balcões de suas amadas” cantando, de instrumento em punho, com “voz ridiculamente terna”. Mais compreensivo, outro francês, o estudioso de literatura luso-brasileira Ferdinand Denis, registraria em livro de 1826 que “gente simples, trabalhadores, percorrem as ruas à noite repetindo modinhas comoventes, que não se consegue ouvir sem emoção”. 
Com a transformação dessa modinha, a partir do Romantismo, em canção sentimental típica das cidades em todo o Brasil (alguns poetas românticos foram compositores, outros tiveram seus versos musicados), tal tipo de canto, transformado desde o séc. XVIII quase em canção de câmara, volta a popularizar-se com a voga das serenatas acompanhadas por músicos de Choro, a base de flauta, violão e cavaquinho. 
Influenciadas pelas valsas, as modinhas têm então realçado seu tom de lamento na voz dos boêmios e mestiços capadócios cantadores de serenatas, por isso chamados de serenatistas e serenateiros. Assim, quando no séc. XX a serenata passa por evolução semântica a seresta (para confundir agora sob esse nome, muitas vezes, o ato de cantar com o gênero cantado), os cantores com voz apropriada ao sentimentalismo de serenatas ou serestas transformam-se, finalmente, em seresteiros.

No auge da carreira, Dudu das Neves apresentava-se
nos palcos de smoking azul e chapéu de seda.
UMA SERENATA UFANISTA
Desde a Idade Média os trovadores e menestréis já costumavam entoar as famosas Cantigas ou Cantares, que compõem um vasto repertório lírico e também satírico: as Cantigas nem sempre tinham tom de romantismo, pois havia as Cantigas de Amigo, de Amor, destinadas aos amigos ou à amada, mas também as Cantigas de Escárnio e Cantigas de Mal-dizer, nas quais enviavam-se recados indelicados a desafetos pessoais, inclinando para o tom humorístico.

E talvez, valendo-se desta tradição ou apenas inspirado pelo sentimento ufanista despertado pelos feitos heroicos de Alberto Santos Dumont, o cantor, compositor, letrista e palhaço de circo, Eduardo Sebastião das Neves, também conhecido como Dudu das Neves, Palhaço Negro, Crioulo Dudu ou Nego Dudu tenha lhe dedicado uma Serenata, cujo repertório contou com uma composição criada para enaltecer os feitos do homenageado.

Anúncio publicado à epoca  - 1905 http://memoria.bn.br/
Eduardo das Neves foi uma das figuras mais populares entre artistas do início do século passado e um dos pioneiros a gravar discos no Brasil. Em 1895, iniciou a carreira artística apresentando-se em circos e pavilhões no Rio de Janeiro.  Em 1900, a Livraria Quaresma publicou "O cantor de modinhas", sua primeira coletânea de versos. Em 1902, a mesma editora lançou o "Trovador da malandragem". Na temática de alguns de sua composições, no gênero lundu estão assuntos do cotidiano da cidade como, "O aumento das passagens", "O bombardeio", "O cinco de novembro (ou O marechal)", " A guerra de Canudos", "Uma entrevista com Fregoli", mas, no contexto geral de suas obras, destacam-se a versão que fez para a canção napolitana "Vieni sul mar", que ele próprio gravou pela Casa Edson e que se tornou amplamente conhecida como "Ó Minas Gerais", já que a música homenageava a nau capitânia da Marinha de Guerra do Brasil, batizada com o mesmo  nome do estado. 

Mas nosso destaque vai para a sua primeira composição, a marcha ou cançoneta "A Conquista do Ar - Santos Dumont", onde homenageava o piloto brasileiro que, um ano antes, havia ganho em Paris o Prêmio Deutsh, por contornar a Torre Eiffel em um dirigível, sendo reconhecido internacionalmente como o maior aeronauta do mundo e inventor do dirigível. Os versos de Eduardo das Neves tornaram-se célebres no Brasil inteiro. A canção glorifica o inventor da aviação em versos desbragadamente ufanistas, que o público da época adorou: 
Santos Dumont sobrevoando Paris 

A Europa curvou-se ante o Brasil / E clamou “parabéns” em meio tom./ Brilhou lá no céu mais uma estrela: / Apareceu Santos Dumont.
Salve, Estrela da América do Sul, / Terra, amada do índio audaz, guerreiro! / Santos Dumont, um brasileiro!
A conquista do ar que aspirava / A velha Europa, poderosa e viril, / Quem ganhou foi o Brasil!
Por isso, o Brasil, tão majestoso, / Do século tem a glória principal: / Gerou no seu seio o grande herói / Que hoje tem um renome universal.
Assinalou para sempre o século vinte / O herói que assombrou o mundo inteiro: / Mais alto que as nuvens. / Quase Deus, Santos Dumont – um brasileiro.

Para apresenta-la ao seu inspirador, o compositor organizou uma homenagem a Santos Dumont, realizada em 7 de setembro de 1903, um dos eventos mais importantes dos primórdios da Música Popular Brasileira. Para a ocasião convocou grandes chorões dentre os quais Quincas Laranjeiras, Sátiro Bilhar, Irineu de Almeida, Mário Cavaquinho, Chico Borges, entre outros.

A partir de 1906, igualmente a Bahiano, Mário Pinheiro,
Cadete e Nozinho era cantor contratado da Casa Edison.
Seu extenso repertório versava entre cançonetas, chulas,
canções, lundus e modinhas.
Ainda em 1903, a marcha foi lançada, pelo cantor Bahiano, em discos Zon-O-Phone. Essa canção foi regravada no mesmo ano pela Banda da Casa Edson, sendo depois regravada pelo cantor João Barros na Victor Record, e depois, no selo Brasil, como um dobrado, registrado pela Banda Carioca, provavelmente na mesma época.

Eduardo das Neves foi o segundo cantor (o primeiro foi Bahiano) a gravar composições de José Barbosa da Silva, o Sinhô, quando este iniciava sua carreira. Ele registrou os sambas "Confessa meu bem", "Deixe desses costumes" e "Só por amizade"; este, sua última gravação, realizada em 10 de abril de 1919. 
Na madrugada de 11 de novembro de 1919, uma terça-feira, na casa de seu filho Cândido das Neves (que era tipógrafo e trabalhava na Estrada de Ferro Central do Brasil), cercado deste e de sua esposa, na Rua do Senado nº14, Rio de Janeiro, Eduardo das Neves faleceu. Estava muito pobre.

Ouça agora o som da gravação original realizada por Bahiano em 1903 .